quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Ensaio sobre sinceridade

Tudo começou numa epifania induzida. Este é o jeito que gosto de chamar todas as conversas despretensiosas, que me fazem chegar a conclusões que certamente eu jamais chegaria mantendo meus pensamentos presos comigo.

Duas garotas num ônibus barulhento

Após uma longa jornada de trabalho, e cheias daquela vontade de externar todos os assunto que ficaram presos entre a tarefa do dia e o teclado, começamos a conversar.
Me antecipei no random, me lembrando do link que recebi por email naquela tarde, e que levava para um site que categorizava filmes usando um índice medidor de sexismo. Nele avalia-se o roteiro em três etapas da regra ("The Rule"): 1- ter mais de duas personagens mulheres, que 2- mantivessem algum diálogo, em algum momento, e que 3- não fosse sobre homens. É interessante ver quantos filmes, tão conhecidos e tão assitidos, falham geralmente na última etapa. E cá está mais um filme sexita para nosso infindável acervo.

Eu, enquanto cinéfila, me prendi à regra, e assumo que só enunciei meu texto com essa passagem, pra que você leitor, ao conhecer "a regra", não me julgue.

Eis que num passe de mágica, dentro daquele ônibus, a caminho de casa, nos colocamos a conversar sobre eles, os amores findados. E cuidadosamente fomos puxando a pontinha dos esparadrapos, exibindo as cicatrizes em formação.

Nossas vidas, minha e dela, possuem pontos tão comuns que chegam a assustar. Nossa educação oriental, nossos desafios pessoais, e até nosso CD com a trilha sonora do desenho animado favorito, é o mesmo. Tudo meticulosamente formatado por pais de uma mesma geração, pela tranposição das mesmas regras impostas e, ainda que a contragosto, pela televisão.

Digo a televisão de modo geral, mas me refiro a toda cultura de massa que nos atingiu durante a vida.

É ela, a mesma que apresenta os filmes sexistas (invisíveis aos nossos olhos), que moldou boa parte das nossas coincidências culturais. E foi dela que me lembrei logo que vi sua cicatriz exposta.

Dizia, com uma discreta tristeza no olhar, o quanto se questiona por ter escutado Dele tantas confissões, e não ter dito absolutamente nada. Apenas algumas mensagens cifradas entre a testa franzida, e os olhos marejados. E até aquele momento, ainda parecia um pouco presa na dúvida de qual teria sido o melhor cenário: talvez não ter exigido uma resposta. Seria um dos caminhos, seguir com as suspeitas caladas. Por outro lado, poderia pensar, ao ouvir tantas coisas tristes, que "pelo menos ele foi sincero"...

Existe uma frase em francês, "L'esprit de l'escalier", que na tradução literal seria "o espírito da escada". Ela significa ter uma resposta sagaz, quando já se é tarde demais. Ainda que fuja um pouco ao propósito, acho que podemos ter um "espírito da escada" com situações que exijam mais que uma resposta esperta. E ela estava prestes a escolher um caminho e ter o seu espírito da escada, quando interrompi com uma pergunta.

"Por que só existem dois caminhos aqui?"

Não perguntar, e seguir sem exigir a verdade, ou ouvir a verdade, e aceitá-la como oferta.
Por que não podemos ser como o Clive Owen em Closer, e perguntar pra Julia Roberts se ela transou com o amante? Insistir até saber a verdade, e diante da sua confissão, deixar-se guiar pelo instinto de curiosidade: "vc transou só na cama? Foram pro sofá? Você gozou? Quantas vezes?"
Ao ouvi-la quase confortável por estar satifazendo sua curiosidade com verdades, ele explode. E joga na cara dela todo a sua tristeza e indignação.

Em Closer as personagens são complexas e corrompidas (a vida imita a arte?). De modo que, eu não usaria nenhuma outra cena dos dois como um exemplo de conduta.
Mas estes 5 minutos me ensinaram bastante.

Por que aceitamos a sinceridade como oferta?

Acho que a única resposta é que aprendemos com a televisão. Quando um preso, ao se declarar culpado, tem sua redenção, ou um torturado se poupa de sofrimento. Ali, e em muitos outros lugares, a verdade é o elemento libertador, usado como moeda de troca.

Deveríamos assumir relações sustentadas pela sinceridade. Não digo relações "cheias de verdade". É saudável não sabermos de detalhes de coisas que fazem parte do passado. É uma maneira de controlarmos nosso limite sobre o outro. Mas tudo que surge a partir do momento em que se assume uma relação, passa a fazer parde de um universo compartilhado. E quando é violado deve ser tratado pelas duas partes sem blindagens. Sem proteção.

Existem casos em que a verdade basta. E o silêncio ao qual nos submetemos faz parte, não da dúvida, mas da desistência. Da tristeza profunda pela qual somos tomados.
Já me calei por falta de ar, outras vezes explodi em perguntas indignadas. Vivemos a ação e reação. Somos, em cada par, um novo sistema. E não podemos nos valer apenas do Clive Owen.
Mas, como ele, acho que não deveriamos nos calar simplesmente por estar diante da verdade.

Pra não deixar de ser cinéfila, eu cito um último filme: "Lucía e o sexo". Nele existe uma passagem bem singela em que uma verdade é compartilhada entre o casal principal, de uma forma tão espontânea, que o peso desaparece. E não se inicia uma cena dramática como a de Closer. Acho que a verdade, neste caso, não foi um elemento surpresa. Foi a base.

Depois da nossa conversa o ônibus chegou.
Descemos juntas, porque coincidentemente, também moramos na mesma rua.

Desejei, a mim e a ela, a boa sorte de amores sinceros.